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14.10.03

A codificação dos «usos e costumes indígenas» - 9: o fim da complacência. 
Nunca tendo passado da fase do projecto, os intentos legislativos de António Augusto Pereira Cabral seriam ultrapassados, logo no ano seguinte, pelo novel e primeiro Ministro das Colónias do Estado Novo [de facto, entre 28 de Maio e 9 de Julho de 1926 antecederam-no no cargo os generais golpistas Gomes da Costa e Gama Ochoa]. Em 1926 o ministro João Belo formula o primeiro código de indigenato, o «Estatuto Político, Civil e Criminal dos Indígenas» [Decreto n.º 12 533, de 23 de Outubro de 1926], uma elaboração do poder central – umas semanas antes o ministro assumia que o governo central se orientava decididamente no sentido da «neutralização política das colónias» – que visava pôr termo ao desregramento que sobre essa matéria subsistia nas colónias desde há décadas, como pudemos comprovar para o caso de Moçambique. No relatório do ministro que antecede o decreto, justifica-se:
«…viu-se cada vez mais que o fim geral da civilização e da nacionalização [dos indígenas] que se pretendia atingir apenas seria conseguido por uma organização que atendesse às próprias condições de existência do indigenato. (…) Não se atribuem aos indígenas, por falta de significado prático, os direitos relacionados com as nossas instituições constitucionais. Não submetemos a sua vida individual, doméstica e pública, (…) às nossas leis políticas, aos nossos códigos administrativos, civis, comerciais e penais, à nossa organização judiciária. Mantemos para eles uma ordem jurídica própria do estado das suas faculdades, da sua mentalidade de primitivos, dos seus sentimentos, da sua vida, sem prescindirmos de os ir chamando por todas as formas convenientes à elevação, cada vez maior, do seu nível de existência».
Do seu articulado ressaltam, de imediato, dois princípios: reafirma e impõe a ideia da codificação do «direito indígena» (artigo 21.º); estabelece, pela primeira vez, o princípio da individualização da pena quanto a réus «indígenas», estipulando que enquanto não fosse publicado um Código Penal «adequado» a tais réus, se atendessem as do Código Penal metropolitano de 1886, «tendo, porém, na devida atenção o estado e civilização dos indígenas e seus costumes».
Talvez que evocando esta última directiva, a Direcção dos Serviços dos Negócios Indígenas recuperou o projecto de Pereira Cabral, enviando-o para apreciação superior em Agosto de 1927. O parecer do Tribunal da Relação de Moçambique não poderia ser mais incisivo, dando como ilegal o projecto de «Código de Milandos» que lhe fora remetido, fundamentando-se no facto de aquele projecto pretender «submeter ao mesmo regimento jurídico os indígenas de toda a colónia, unificando os usos e costumes e criando talvez novos costumes, o que vai decerto retardar o progresso e causar sérias perturbações na vida doméstica dos indígenas» [«Parecer do Tribunal da Relação de Moçambique acerca da Proposta de Código dos Milandos remetida em 25 de Agosto de 1927 (Ofício n.º 1746) pela Direcção dos Serviços dos Negócios Indígenas, 19 de Setembro de 1927»]. Alegava Manuel Moreira da Fonseca, juiz-presidente do Tribunal da Relação, que aquela proposta contrariava o estipulado no art.º 2.º do «Estatuto Político, Civil e Criminal dos Indígenas» que ordenava que as codificações dos usos e costumes se procedessem por circunscrições administrativas ou regiões, uma vez que aqueles variavam de região para região, consoante a «tribo, a raça e os contactos com os europeus». Era, manifestamente, o encerrar de um ciclo. O Estado Novo sabia ao que vinha, buscava atingir certos objectivos que não se compadeciam com complacências algo filantrópicas.
[foto: «Inhambane – Mercado de Homoíne». Todo o sistema do comércio colonial está sintetizada nesta imagem: o administrador português e os comerciantes indianos, o cipaio, o intermediário, os produtores africanos].

8.10.03

A codificação dos «usos e costumes indígenas» - 8: ignorância e preconceito. 
No quadro da sua acção à frente da Secretaria Civil do distrito de Inhambane, e para a prossecução dos objectivos de regulamentação dos usos e costumes em um novo «código de milandos», Pereira Cabral redigiu e enviou a todos os administradores de circunscrição do distrito um inquérito etnográfico de que, até hoje, se desconhecem as respostas, embora seja de supor que se existiram foram utilizadas em obra posterior do autor, o título Raças, Usos e Costumes dos Indígenas da Província de Moçambique. Apensa a esta obra de 1925 apresenta-se um «Projecto de Código de Milandos» demasiado sintético para acrescentar algo de novo aos anteriormente elaborados. No corpo da obra traça-se um quadro etnográfico genérico dos principais grupos étnicos da colónia, mesmo assim cheio de lacunas e com vastas manchas do mapa em branco, além de perpassado por juízos de valor etnocêntricos absolutamente caricatos, não fora o caso de revelarem uma atitude discriminativa irredutível, afinal a essência do próprio colonialismo: «... o indígena é naturalmente mentiroso, mente por hábito ... a indolência no indígena é uma característica congénita da raça …». As imprecisões na designação dos etnónimos são por demais óbvias e a inscrição geográfica dos grupos étnicos, bastas vezes, deixam-se deslocar centenas de quilómetros. Por aí se pode perceber como superficial era o conhecimento etnográfico da colónia, após 3/4 de século de investidas legislativas no sentido do conhecimento de «usos e costumes», intenções logradas não só pelo desleixo, pela incúria, pela desorganização administrativa e política mas também, sabemo-lo agora com Pereira Cabral, pela «leitura» que os agentes da colonização, no terreno, faziam dos propósitos dessas disposições legislativas. De resto, o próprio Pereira Cabral parece ter sido vítima dessa mesma inacção militante. Na introdução à sua obra de 1925, reconhece que o inquérito etnográfico que elaborara em 1916 — enquanto Secretário dos Negócios Indígenas junto do Governo-Geral em Lourenço Marques, cargo que ocupou entre 1915 e 1925 — e que fizera distribuir por todos os distritos do Norte da colónia teve «muito pouco sucesso, pois raras foram as autoridades administrativas que responderam». Prevaleceria ainda, como veremos em próximos posts, aquela modorra administrativa, aquele inconsequente torpor burocrático mesclado, neste contexto, com os mais despudorados preconceitos raciais, uma preguiça ignorante e boçal que faria escola na administração colonial portuguesa e que nem o furor organizativo do Estado Novo conseguiria domar.
[foto: «Inhambane. Depois do trabalho». Apesar de não datados, os postais que temos vindo a reproduzir, deverão ter sido impressos em finais da década de 20, início dos anos 30. Reproduzem, de forma eloquente, a mentalidade colonial da época, sustentada no mais arreigado racismo].

7.10.03

A codificação dos «usos e costumes indígenas» - 7: os «ideais» republicanos. 
Surpreendentemente, a instauração da República em 1910 acabaria por atender às preocupações dos centuriões da «escola de António Enes» ao incorporar na legislação de 1914, a «Lei Orgânica da Administração Civil das Províncias Ultramarinas», o princípio de que não seriam atribuídos aos «indígenas» das colónias portuguesas direitos políticos relativos a instituições de carácter «civilizado», europeu. Mas, em boa verdade, se se ignorarem as disposições provinciais, elaboradas localmente, o governo metropolitano pouca matéria legislativa e programática produziu no domínio da gestão das populações colonizadas.
Durante a vigência da I República, um nome se destaca em Moçambique na condução dos «negócios indígenas»: António Augusto Pereira Cabral. Começamos por o encontrar, entre 1908 e 1914, como Secretário Civil do governo do — para já incontornável — distrito de Inhambane. A acção de maior relevo que até nós chegou foi, como não poderia deixar de ser, uma codificação dos usos e costumes do distrito. Publicado em 1910, Raças, Usos e Costumes dos Indígenas do Districto de Inhambane apresenta-se como uma síntese do «saber acumulado» sobre a matéria. Nada de significativamente novo poderemos encontrar ao longo das suas páginas, a não ser algumas reflexões esparsas sobre o entendimento da política colonial, a administração dos «indígenas» e a imperiosidade dessa «contemporização» com os usos e costumes, essas sim muito reveladoras dessa nova mentalidade colonial anti-liberal:
«A riqueza de uma colónia está na proporção da densidade da população, mas se este elemento poderoso de riqueza não for bem administrado, para que servirá?! Pode haver boa administração desde que se não conheçam bem os administrados? É para duvidar!»
E, logo de seguida, Pereira Cabral ajuda-nos a compreender, na sua essência, o empenho das autoridades dessa nova era colonial em codificar os usos e costumes. Não se trata já da contemporização ou da condescendência piedosa, algo filantrópica até, que, de alguma forma, motivara os mentores liberais do início da segunda metade de Oitocentos. Esta reassunção nas primeiras décadas do século XX do interesse pelos usos e costumes destinava-se a assegurar a manutenção de um estatuto permanente — e, se possível, perene — de inferioridade dos africanos colonizados, pois que, a não serem regulamentados esses usos e costumes, os africanos, enquanto cidadãos, poderiam sentir-se tentados a reivindicar regalias, direitos e deveres inscritos no Direito Civil e Criminal dos europeus:
«Querer aplicar a pretos as mesmas leis pelas quaes se regulam os brancos, e tudo quanto ha de mais absurdo e de pessimas consequências, para o futuro de uns e de outros. Ao Estado compete legislar, e ao branco, que por dever de ofício ou mecessidade da sua ocupação tem que estar em contacto com o indígena, pertence-lhe fazer que o nosso domínio seja proveitoso, não odiada a nossa superioridade, trata-lo, enfim, com a equidade e justiça que um ente inferior merece de um outro, que lhe é e será sempre superior».
[foto: «Inhambane. O trabalho nobilita o homem». Imagem amavelmente cedida por António Carvalhal, da colecção de postais reunida por seu pai, Amilcar Vieira da Silva. Os próximos posts serão ilustrados por imagens provenientes dessa colecção].

4.10.03

A codificação dos «usos e costumes indígenas» - 6: a matriz inhambanense. 
Porque nenhum «justo critério», «tutela salutar» ou «prudência» foi complacente ou contemporizador com os anos das campanhas militares de ocupação efectiva, tornar-se-ia necessário esperar pelo governo de Alfredo Augusto Freire de Andrade (Outubro 1906 – Novembro 1910) para que nova disposição legislativa viesse insistir na complacência com os costumes gentílicos, ordenando aos capitães-mores, comandantes militares e administradores de circunscrição a apresentação, no prazo de quatro meses, de relatórios etnográficos, a fim de se elaborarem os códigos indispensáveis ao julgamento de litígios e pleitos «indígenas» [Portaria Provincial n.º 144, de 1 de Março de 1907]. Repare-se no corpo institucional envolvido nesta disposição, sobretudo militares, ainda no rescaldo das campanhas de ocupação efectiva em que Freire de Andrade, convém acrescentar, também esteve envolvido. Naturalmente, até pelo prazo estabelecido para a entrega dos relatórios, dessa «ordem de marcha» nada resultou, a não ser, uma vez mais, um «Código de Milandos» do distrito de Inhambane.
Poder-nos-emos inquirir sobre a proficuidade do distrito de Inhambane nesta matéria, a única divisão administrativa da colónia que sempre correspondeu, por vezes até em antecipação, às demandas legislativas para a codificação dos «usos e costumes». De resto, o «modelo» de Inhambane foi até seguido na outra grande colónia portuguesa em África. Por decreto de 27 de Maio de 1911 [publicado no Boletim Oficial de Angola n.º 25, de 24 de Junho do mesmo ano] o governo metropolitano mandou aplicar em todo o território da colónia de Angola, o sistema de administração adoptado no distrito de Inhambane, constante da Portaria Provincial n.º 671-A, de 12 de Setembro de 1908, de Moçambique. Se analisarmos em detalhe os sucessivos «Códigos de Milandos» inhambenses produzidos, depressa constataremos que são versões, acrescentadas e anotadas, de uma matriz original, o Codigo Cafreal do Districto de Inhambane de 1852. Surpreendente ainda o facto de nas três primeiras décadas do século XX, no período grosso modo correspondente à vigência da I República, a codificação inhambense ter servido de matriz a uma grande parte das iniciativas produzidas no domínio da codificação dos usos e costumes da colónia, sobretudo pela intervenção de António Augusto Pereira Cabral, empenhado colonialista.
[foto: Freire de Andrade à porta da sua tenda de campanha em Magul (Gaza), Setembro de 1895]

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