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31.7.03

Férias [actualizado em 17/08] 
O funcionário da «Companhia de Moçambique» vai entrar de licença graciosa, viajando para a Metrópole no vapor «África» no dia 1 de Agosto. O regresso está aprazado para o dia 18 do mesmo mês, no vapor «Loanda».
«Desejamos ao Exmo Funcionário umas excelentes e bem merecidas férias na Metrópole, em regime de licença graciosa como manda o Estatuto do Funcionalismo Ultramarino, esperando que o aumento das ajudas custo lhe permita visitar o torrão natal de lés a lés, matar saudades e restaurar-se das andanças por terras d'África. Aguardamos com impaciência o seu regresso às lides, para podermos continuar a apreciar as suas crónicas sempre pormenorizadas, acerca das riquezas do nosso Ultramar e das suas gentes». [email remetido por Zeferino Zagallo]

Trabalho Forçado e Escravatura 
Uma das provas mais evidentes do amplamente reconhecido anacronismo da política colonial portuguesa, foi a perdurabilidade do negócio da escravatura até uma data muito tardia. Já em finais do primeiro quartel do século XX é remetida ao governo português e às autoridades coloniais de Moçambique uma participação entregue na Comissão Provisória de Escravatura da Liga das Nações pela «The Anti-Slavery and Aborigines Protection Society» assinalando a prática de trabalho forçado em condições em tudo semelhantes às da escravatura (trabalhadores acorrentados), uso de palmatória e outros castigos corporais, especialmente nos territórios da Companhia do Niassa e da Companhia de Moçambique. Tal participação baseava-se no testemunho de G. A. Morton, ex-oficial britânico que tomou parte no conflito anglo-boer e depois se fixou na África do Sul, de onde regularmente partia para campanhas de exploração geográfica por toda a África Oriental. O «Relatório Morton» (como ficou conhecido) teve grande impacto nos areópagos internacionais mas poucas, ou nenhumas, consequências no terreno, pelo que as campanhas de denúncia continuaram nos anos seguintes. Talvez por isso mesmo, já em 1936, o governo português fez distribuir pelas autoridades administrativas das possessões coloniais, «um interessante questionário sobre escravidão, escravatura e servidão doméstica para ser respondido pelos administradores e chefes de posto administrativo e destinado a verificar a existência ou não destas formas de incapacidade jurídica» [António Almeida (1965), «Os estados antigos dos nativos de Moçambique (sul do rio Save) quanto à liberdade»]. Emanado pelo Ministério das Colónias [«Ministério das Colónias. Circular Confidencial nº 33, de 22 de Julho de 1936»], esse «Inquérito sobre a existência de escravatura ou servidão nas colónias portuguesas e modalidades dos costumes indígenas» apresenta-se na forma de inquérito etnográfico, como se a escravatura fosse um dado meramente cultural, costumeiro até, uma bizarrerie anterior à colonização portuguesa. O conjunto de questões contidas no Inquérito configuram, habilidosamente, essa ideia de que seriam os colonos portugueses os principais arautos do combate às diversas formas de escravidão pretensamente inerentes às culturas africanas: «O contágio social exercido sobre os indígenas pelo elemento europeu está, ou não, em via de transformar a ideologia indígena no concernente à difusão, entre os nativos, do convencimento de que a escravidão (ou servidão) tem de desaparecer por completo?» [«Resposta do Distrito de Tete à Circular Confidencial nº 33, de 22 de Julho de 1936, do Ministério das Colónias. Inquérito sobre a existência de escravatura ou servidão nas colónias portuguesas e modalidades dos costumes indígenas, que podem ter a aparência de escravidão ou servidão»].
A necessidade de realização do inquérito, nessa data, poderá querer significar, pelo menos, uma de três coisas: 1)- o governo português não estava seguro da total extirpação do fenómeno e pretendia, pelo conhecimento objectivo da situação, promover estratégias de encobrimento; 2)- estava absolutamente certo, em 1936, do desaparecimento dessas formas de escravidão e podia, finalmente, dar provimento às determinações da Convenção de 1926, promovida pela Liga das Nações; 3)- pretendia iludir a questão fundamental sobre as origens do fenómeno. Em todo o caso, os resultados do inquérito estão ainda por analisar - conhecem-se as respostas de apenas algumas, poucas, circunscrições administrativas dos Distritos de Tete, Moçambique e Porto Amélia - mas o fenómeno da escravatura parece ter conhecido nas colónias portuguesas uma extensão temporal ímpar, até pela ténue fronteira formal que a separava do trabalho forçado. Muito significativamente em 1947 o Ministério das Colónias promoveria um inquérito sobre variados aspectos da «política indígena» e que deveria ser respondido por todas as instâncias da administração colonial e no qual constava, ainda, um capítulo referente à escravatura contendo as mesmas questões do inquérito de 1936. Seguramente, o tema estava longe de ser encerrado.

30.7.03

Plano Marshall em Moçambique 
O particularismo da colonização portuguesa de Moçambique pode ser aferido pelo facto nada despiciendo, embora ainda não completamente justificado, de a colónia do Índico ter sido o único território ultramarino português a beneficiar de importantes investimentos ao abrigo do designado Plano Marshall. Apesar de ausente das mais importantes conferências internacionais que ergueram a nova ordem económica internacional do período do segundo pós-guerra — como a Conferência de Bretton Woods, ainda em 1944, que criou o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Internacional para a Reconstrução e o Desenvolvimento (BIRD), ou a Conferência de Genebra, em 1947, que originou o Acordo Geral sobre as Pautas Aduaneiras e Comércio (GATT) — Portugal, que não tinha sofrido destruições de guerra, conseguiu obter, em 1947, uma pequena fracção de ajuda económica do Plano Marshall. Dessa forma, o governo português contraiu empréstimos de cerca de 54 milhões de dólares, dos quais 40 milhões foram aplicados no território continental e um pouco mais de 25% (14 milhões) foram investidos em Moçambique. Está por esclarecer cabalmente a natureza selectiva deste investimento, mas é de supor que parte substancial desse montante tenha sido aplicado no conjunto de infra-estruturas ferroviárias e portuárias de Moçambique, no pós-guerra não apenas para servir ao escoamento dos países limítrofes (África do Sul, Suazilândia, Rodésia), — a única vocação que lhe parecia destinada até então — mas também para ampliar a malha ferroviária no interior do próprio território e consolidar as estruturas portuárias: data do início da década de 50 o prolongamento da linha de Xinavane e do Limpopo, a ligação de Lourenço Marques a Malvérnia — junto ao triângulo fronteiriço Moçambique-África do Sul-Rodésia — cruzando todo o sul de Moçambique, o estabelecimento do complexo portuário da Matola, a criação de uma zona industrial nesta localidade vizinha de Lourenço Marques, entre muitos outros investimentos do mesmo jaez destinados a incrementar o fomento comercial e industrial da colónia no pós-guerra. Moçambique começava então, para glosarmos um conceito tomado de Ricardo, a deixar de ser uma colónia «rentista» para passar a ser um território rentável: até ao período da 2ª Guerra, a economia colonial moçambicana tinha ganhos acima do nível do seu Produto Nacional Bruto, por via das rendas resultantes da alienação da força de trabalho indígena nas minas do Rand e do aluguer dos serviços portuários e ferroviários, ambos sobre-rendimentos de origem externa que não advinham do desempenho da sua estrutura produtiva mas sim resultantes do controlo de recursos de natureza não-exclusivamente económica proporcionados por uma situação geográfica muito particular e uma conjuntura política não menos específica; no pós-guerra, a esses rendimentos juntaram-se os disponibilizados pelo desenvolvimento, senão mesmo estabelecimento, da sua estrutura produtiva industrial e um conjunto de importantes medidas de apoio ao sector primário. Nesta fase rentável, o regime procurava reapossar-se da economia colonial, um intento já pugnado no Acto Colonial de 1930 mas que, no respeitante a Moçambique, teve uma aplicabilidade limitada pela natureza subordinada da economia colonial moçambicana face à África do Sul e outras colónias britânicas na África Austral. Dessa forma se entende o reforço de investimentos na colónia através de dotações do Plano Marshall, ímpar no contexto do espaço colonial português. Sem abdicar dessas importantes fontes de rendimento — a venda de mão-de-obra indígena e a prestação de serviços ferroviários e portuários — o regime aposta no desenvolvimento do sector primário e, sobretudo, no crescimento do sector secundário, numa tardia re-assumpção «nacionalista» dos ditames do Acto Colonial de 1930, como é reconhecido por um dos principais mentores dos tão propalados «Planos de Fomento» que animaram a economia colonial moçambicana por toda a década de 50 e 60: «… o crescimento industrial que ocorreu nos territórios ultramarinos, particularmente em Moçambique, é colhido com agrado, especialmente porque está ligado à economia e aos interesses nacionais…» [Manuel Pimentel dos Santos (1956), A Indústria em Moçambique].

Colonialismo ou colonialismos? 
Para além das disposições políticas e ideológicas emanadas do poder central, em Lisboa, cada colónia possuía as suas especificidades sociais e económicas: a existência de diversas disposições legislativas referentes ao estatuto civil das «populações indígenas», estabelecendo diferenças de grau entre as populações dos diferentes territórios coloniais, concorre para a confirmação dessa asserção. Em grande medida, tal distinção justificava-se pelo modelo de ocupação colonial próprio a cada território. Para nos reportarmos, apenas, às grandes colónias de Portugal em África, poderemos estabelecer o seguinte quadro genérico, válido até à avalanche reformista da década de 60: a Guiné era uma «colónia de plantação», Angola uma «colónia de povoamento» e Moçambique uma «colónia de serviços». [Para uma distinção operativa dos conceitos «colonização de povoamento» e «colonização de plantação» referenciada ao contexto da política colonial portuguesa ver José Capela (1978), Escravatura. Conceitos. A empresa do saque].
António Carreira, num importante estudo sobre a mão-de-obra africana na Guiné [(1948), «Problemas do trabalho indígena na colónia da Guiné»] justificou plenamente o regime de ocupação daquela colónia: para além dos constrangimentos climatéricos e ecológicos, a grande densidade populacional, «uma notável organização social, na maioria das comunidades gentílicas», assim como a relutância do guineense em se assalariar, levaram-no a concluir que tais factores concorreram para tornar a Guiné numa «possessão caracterizadamente de exploração agrícola do nativo». Angola, desde sempre, parece ter sido o destino preferido da emigração metropolitana para as colónias, em consonância com um maior volume de investimentos e um tradicional e fluorescente comércio colonial: durante quase todo o século XIX, por exemplo, Angola apresentava recorrentemente o dobro dos valores obtidos em Moçambique. Por outro lado, as governações de Norton de Matos em Angola (1912-1915, 1921-1923), ainda durante a vigência da I República, caracterizaram-se por fortes incentivos ao povoamento branco, retomados, depois, nos anos 60. Moçambique, por seu lado e apesar dos esforços de uma política de povoamento branco que se estendeu por toda década de 60, apresentava em finais dessa década uma percentagem de população branca proveniente da metrópole — 2% — muito inferior à de Angola (5,1 %). A colónia do Índico sempre se caracterizou por ter com a metrópole uma relação mais distanciada, integrando-se num espaço económico que tinha como eixo a África do Sul e as colónias britânicas da África Austral. Tal concorreu para que Moçambique se encontrasse numa relação de dependência e subordinação em relação à África do Sul — como se de uma colónia sul-africana se tratasse — o que conduziu a região Sul de Moçambique a principal fornecedora de mão-de-obra daquele país, enquanto que o Norte e o Centro se enfeudavam, até ao Acto Colonial de 1930, às companhias majestáticas de capital maioritariamente estrangeiro. Essa vocação para a prestação de serviços que caracterizava a gestão colonial portuguesa em Moçambique era, ainda, reforçada pela rede ferroviária, primordialmente concebida e dimensionada apenas para servir a África do Sul e as colónias britânicas através dos portos das cidades da Beira e de Lourenço Marques.
Assim sendo, no que diz respeito à colonização portuguesa em África, a diversidade dos modelos de gestão e ocupação próprios a cada colónia justificam que o caracterizemos como uma pluralização de situações coloniais. Em rigor, sempre que se refira esse período histórico, dever-se-ia escrever «os colonialismos portugueses em África».

25.7.03

Os últimos selos (1940-1941) 

A «nacionalização» das colónias a que o Estado Novo procedeu no início da década de 40 (e a que regressaremos num outro post) cerceou definitivamente os interesses e as atribuições de soberania das companhias majestáticas. Pelo Decreto-lei n.º 31896/42 (publicado no Boletim Oficial de Moçambique n.º 15/1942) a administração dos territórios até então cometidos à Companhia de Moçambique regressou à administração soberana do Estado português. A última franquia postal em circulação nos territórios da Companhia de Moçambique foi este espécimen de 1940, comemorativo do 3.º Centenário da Restauração de Portugal. Sobre um desenho de Alberto de Sousa a Companhia de Moçambique mandou imprimir a talha doce na Waterlow & Sons, de Londres, os valores de 40 centavos (verde escuro e preto), 50 c. (violeta e verde), 60 c. (carmim e azul), 70 c. (sépia e verde cinza), 80 c. (carmim e verde cinza) e 1 escudo (azul e preto).
No ano seguinte, 1941, a Companhia de Moçambique ainda mandaria imprimir, na forma de Imposto Postal para a Assistência Pública, um selo no valor de 2 centavos.

24.7.03

O primeiro selo (1895) 



Tipo «Elefantes», como ficou conhecido na filatelia nacional, este é o primeiro selo mandado imprimir pela Companhia de Moçambique e posto em circulação em 1895. Tipografado sobre desenho e gravura de José Sérgio de Carvalho e Silva, conheceu valores de 2 1/2 réis (amarelo esverdeado), 5 rs. (laranja), 10 rs. (lilás malva), 15 rs. (castanho), 20 rs. (lilás cinza), 25 rs. (verde e verde claro), 50 rs. (azul), 75 rs. (carmim), 80 rs. (verde claro), 100 rs. (castanho sobre laranja), 150 rs. (castanho amarelado sobre rosa), 200 rs. (azul e azul claro), 300 rs. (azul sobre laranja), 500 rs. (preto) e 1000 rs. (violeta claro). Substituiu, portanto, os selos da Província de Moçambique (série D. Luís I) nos quais, a partir de 1892, a Companhia de Moçambique tinha aposto a sobrecarga Comp.ª de Moçambique.

23.7.03

(Parêntesis Sartriano) 
O Abrupto que me desculpe a evocação de Sartre no post «Indígenas e Nativos» mas naqueles anos dourados do estalinismo, Jean-Paul Sartre, Aimé Césaire, Frantz Fanon e Albert Camus, sim, Albert Camus, comungavam na causa da afirmação dos direitos dos povos colonizados. Dir-me-á, muito justamente, que todo esse movimento intelectual anti-colonial esquecia, por exemplo, o colonialismo soviético, do mesmo modo que o movimento dos não-alinhados e o seu empenho anti-colonial, afirmado em 1955 na Conferência de Bandung, o ignorava por completo. É certo. Como sempre, também as causas justas nem sempre podem escolher os seus compagnons de route. Aliás, está por fazer um debate em torno da questão de se saber em que momento o Partido Comunista Português ganhou, de facto, uma consciência anti-colonial. Um estudo sério sobre a extensão do PCP em Moçambique, a Organização dos Comunistas Moçambicanos (O.C.M.) — estrutura que, ao que suponho, só se dissolveria, por imposição da direcção do PCP, já nos anos 60 — muito ajudaria ao esclarecimento dessa questão [aqui fica o repto ao Estudos sobre o Comunismo].
De todo o modo, voltando a esta nota sartriana, já nos anos 70 Léopold Sédar Senghor evocaria a importância do contributo do grupo de Sartre (incluindo aí Camus) para o reconhecimento e divulgação dos ideais da negritude e, por extensão, do anticolonialismo.

Indígenas, Nativos, Assimilados e Civilizados 
O princípio da assimilação, ou integração, enquanto princípio ideológico, perpassou por toda a política colonial portuguesa, desde os tempos do liberalismo. A durabilidade do princípio não implicou, todavia, que sobre ele a política colonial portuguesa tivesse elaborado um conceito estável e coerente: apenas em 1961, no mandato reformador de Adriano Moreira, foram claramente definidos os princípios fundamentais da «integração». Assim, se bem que largamente propalada e defendida por mais de um século, tal não evitava que em 1950 apenas a uma percentagem ínfima das populações dominadas — segundo o censo daquele ano, cerca de 30 000 indivíduos em Angola, 5 000 em Moçambique e 1 500 na Guiné — fosse atribuída o estatuto de «civilizada» ou «assimilada». Duas ordens de razões fundamentais concorriam para essa tão baixa taxa de «civilizados». Em primeiro lugar, poucos africanos estavam interessados em «civilizar-se»; depois, aqueles que desejavam tal estatuto confrontavam-se com toda uma série de obstáculos: perda de enquadramento social, por impedimento legal de acesso pleno ao contexto cultural de origem; sobrecarga fiscal, tão mais gravosa quanto não era fácil obter um emprego no mercado de trabalho «civilizado», em concorrência com os europeus pobres e os mestiços; por último, a obtenção do estatuto de «civilizado» era manifestamente dificultada pela morosidade e pelos custos do processo, não sendo de excluir, igualmente, uma certa selectividade política.
Em termos genéricos, o princípio da «assimilação» consagrava o seccionar da sociedade colonial daqueles territórios em três estratos sociais fundamentais: os colonos, os assimilados, os indígenas. Mas, na realidade, a estratificação social da sociedade colonial era bem mais complexa e o próprio regime a acentuava, seguramente na ânsia de atenuar a oposição essencial entre colonos e colonizados. Num texto de 1956 significativamente intitulado «As elites das províncias portuguesas de indigenato (Guiné, Angola, Moçambique)», Adriano Moreira entendia que a sociedade colonial, na sua evolução progressiva para a integração, deveria atender ao papel desempenhado por sectores naturalmente diferenciados, as elites, que ele apresentava na seguinte hierarquia: 1- os colonos; 2- os assimilados; 3- os assalariados urbanos, já aculturados; 4- as autoridades gentílicas colocadas sob autoridade portuguesa; 5- as minorias étnicas e religiosas (os muçulmanos da Guiné, os chineses e os indianos de Moçambique). Postadas do «lado de cá» da fronteira que separava a civilização da selvajaria, a cultura da natureza, essas elites eram conjuntamente opostas aqueles que se situavam do «lado de lá», os indígenas, que deveriam ser «civilizados» em obediência aos princípios da assimilação, processo pelo qual poderiam, finalmente, escapar a essa natureza algo paradisíaca, algo pecaminosa:
«Estes princípios [estatuto do indigenato e assimilação] constituem a natural reacção dos que observaram directamente as consequências da liberdade dada às populações indígenas para não trabalharem e para continuarem vivendo como sempre viveram, nas exuberantes regiões equatoriais, estendendo as mãos aos frutos para se alimentarem e às cascas das árvores para se cobrirem» [Francisco Bahia dos Santos (1955), Política Ultramarina de Portugal].
Fundamentava-se, dessa forma, uma escala de direitos e deveres políticos, sociais e económicos, que justificava, em última instância, uma relação marcadamente assimétrica entre os pólos antitéticos dessa hierarquia:
«A regra revolucionária da igualdade perante a lei teve como corolário lógico o princípio de que ninguém pode invocar a ignorância desta, sendo certo e sabido todavia que nem os técnicos podem ter um conhecimento completo e exacto das leis. Ora é o retorno à desigualdade perante o dever que o Estatuto [do Indigenato] consagra, colocando a cargo do colono um dever de diligência e protecção que não lhe pertence na metrópole e que o obriga a uma diligência excepcional. Consagra-se assim um tipo normativo de colono, que se traduz em atribuir a todo o português no ultramar uma função de interesse público. A faculdade que o indígena tem de, voluntariamente e logo que tenha adquirido os usos e costumes pressupostos pela aplicação do direito público e privado português, optar pela lei portuguesa comum, ficando assim assimilado aos cidadãos originários, mostra como a igualdade do género humano continua a inspirar o nosso direito» [Adriano Moreira (1959), Política Ultramarina].
No contexto da realidade colonial o que isto pretendia significar era que se o colono estava investido do dever acrescido de tutela das populações colonizadas, ele estava, adicionalmente, investido de todos os direitos, como, por exemplo, o de dominação política e o de exploração económica. Era essa a verdadeira significância da «missão civilizadora», subliminarmente alinhada por detrás de palavras como «assimilação» e «integração», por vezes, já nos anos 60, confundidas com «aculturação».

22.7.03

Indígenas e Nativos 
A especificidade do colonialismo contemporâneo não resulta somente do facto de afirmar sociedades que se julgam superiores, mas do facto dessas sociedades justificarem a sua superioridade na ciência e, particularmente, nas ciências sociais. A situação colonial não pode, por isso mesmo, ser encarada apenas como um modelo de gestão política, económica e social, correspondente a uma determinada fase da evolução das economias e políticas do Ocidente. Ela deverá ser perspectivada, também, na sua dialéctica de permuta de dados culturais em que o seu carácter agonístico deriva da natureza impositiva e assimétrica das culturas em confronto. Daí que a situação colonial, como realidade objectiva, constitua o fecho do ciclo da percepção da alteridade iniciada no século XVI: num extremo — e após a fase da constatação, levantamento e inventariação do exótico — o modelo iluminista do «bom selvagem», domínio de uma alteridade homogénea e auto-suficiente, objecto de um «olhar distanciado» [glosando o título de uma das últimas obras de Lévi-Strauss (1983), Le Regard Éloigné]; no outro extremo desse ciclo, a situação colonial, com toda a sua carga de intervenção, reduzindo ou amplificando os factores da alteridade, consoante as suas necessidades ideológicas (as tais «pseudojustificações e comportamentos estereotipados» a que se referia Georges Balandier na sua definição de «situação colonial»). Tal alteridade é sancionada ideologicamente pela segmentação básica da sociedade colonial entre «civilizados» e «indígenas», isto é, tal discriminação identifica a coesão do sistema colonial através da redução dos autóctones à categoria de uma criação da natureza e de um objecto:
«Toda a gente sentiu o que há de depreciativo na palavra indígena que é utilizada para designar os nativos de um país colonizado. O banqueiro, o industrial, o próprio professor da metrópole não são indígenas de nenhum país: nem sequer são nativos».[Jean-Paul Sartre (1949), «Matérialisme et Révolution»]
Esta «coisificação» do colonizado [foi Aimé Césaire (1950) quem primeiro estabeleceu a equação «colonização=coisificação» em Discours sur le colonialisme] conduz-nos a uma noção operatória muito pertinente para a Antropologia — a oposição natureza / cultura — e que para a situação colonial se demonstra perfeitamente operativa se aplicada, por exemplo, à análise da política colonial portuguesa nas suas variadas e sequenciais assunções assimilacionistas. Com efeito, mesmo nos casos de não aplicabilidade da política colonial de indirect rule [administração indirecta], as diferentes potências coloniais implementaram em África sociedades dualistas, umas dotadas de uma parte urbana, usufruída por «brancos» e «assimilados», onde as regras políticas imitavam as da metrópole e outras dotadas de uma parte de «mato», habitadas por «não civilizados», onde as regras políticas da parte urbana não se aplicavam [T. Biaya (1998), «Le Pouvoir ethnique – concept, lieux d'enonciation et pratiques contre l'État dans la modernité africaine: analyse comparé des Mourides (Sénégal) e Luba (Congo-Zaire)»]. Tornar-se-ia possível, portanto, pensar uma Antropologia do Colonialismo, sobretudo nas suas implicações simbólicas.

16.7.03

Oliveira Martins 

O historiador e sociólogo Oliveira Martins foi um dos mais constantes paladinos da causa colonial durante o período final da monarquia constitucional [leia-se, p.ex., O Brazil e as Colónias Portuguezas]. Em jornais da época, «O Tempo» e «O Repórter», assinava regularmente colunas de opinião em que a temática dominante, naqueles anos que antecederam o Ultimato inglês (1891), era a causa colonial. Preocupava-o sobremaneira o modelo de gestão económica das colónias ou, para utilizar uma expressão devidamente situada no seu tempo, a «exploração económica do Império». Em meados de 1889 o governo britânico acabara de autorizar a carta constitucional da British East African Company. Oliveira Martins, como o governo português e todo aquele grupo de pressão colonial que se reunia em torno da então recém constituída Sociedade de Geografia de Lisboa, estava ciente de que aquela companhia britânica ameaçava directamente os interesses portugueses na costa oriental africana. Entrevia, contudo, grandes vantagens no modelo da British East African Company , defendendo que a resposta portuguesa aos avanços britânicos na África Oriental se deveria processar nos mesmos moldes, cometendo a associações de interesses privados a exploração económica das colónias:
«Este processo de confiar a preparação do domínio político regular à iniciativa particular do comércio, deu bons resultados, sempre que circunstâncias acidentais o não impediram. [...] Quando, no primeiro quartel deste século, a Companhia das Índias foi abolida, a administração oficial inglesa achou de pé uma organização completa. Substituiu-se-lhe. A lição da história aprova, pois, a instituição de agora para África: ponto era que a mesma lição nos servisse à rebours. Vendo que a nossa Índia ficou reduzida perante a inglesa, cumpriria prevenir em África a repetição de factos idênticos. Como? [...] Como quer que seja, o facto é que, se não se conseguir rapidamente a consolidação do nosso domínio sobre alicerces sólidos de interesses, nós, agarrados aos pergaminhos dos tratados, vê-lo-emos tornarem-se palimpsestos onde, sobre os textos apagados, hão-de escrever-se novos diplomas. [...]
Essa companhia é, como todas as companhias congéneres que lhe serviram de molde, mais do que um Estado segundo as noções civilizadas da actualidade. É mais, porque todas as regalias soberanas se subalternizam ao princípio visceral do comércio. É um Estado comerciante: daqui uma energia e uma actividade correspondentes à força do princípio vital do comércio, que é o lucro. Se na África tropical é possível o estabelecimento de impérios, o caminho indicado pela história para o conseguir é este. Os negociantes são propagandistas muito mais eficazes do que os funcionários. Dar ao comércio foros políticos foi o princípio que serviu sempre para avassalar e dominar regiões bárbaras».

[O Repórter, 21 de Setembro de 1889]

Tanto denodo na defesa da magnitude das companhias majestáticas só poderia provir daquele que era, desde o ano da formação da «Companhia de Moçambique», um dos seus administradores em Lisboa: Joaquim Pedro de Oliveira Martins.

14.7.03

Companhias Majestáticas - IV 
A primeira companhia majestática nas possessões coloniais portuguesas foi a «Companhia de Moçambique», fundada em 1888 sobre o remanescente do conjunto de concessões atribuídas a Paiva de Andrada nos últimos anos da década de 70 e primeira metade da década seguinte. Se bem que requerida em 1888, só em 1891 foi outorgada a 1.ª carta orgânica da Companhia, por força de um decreto-lei de 11 de Fevereiro desse mesmo ano. Na letra dessa disposição legislativa era concedida à «Companhia de Moçambique» a soberania sobre um vasto território da Província de Moçambique, a norte limitado pelo rio Zambeze, a sul pelo rio Save. A concessão sobre todo este território de Manica e Sofala era-lhe atribuída por 25 anos. Um decreto-lei de 7 de Maio de 1892 aprova a «Carta Orgânica e bases para a administração dos territórios da Companhia de Moçambique», pela qual são regulados os seus poderes administrativos. Em 22 de Dezembro de 1893 é, também por decreto-lei, modificada a 1.ª Carta Régia de Aprovação da Companhia, alargando o seu território a todo o vale do rio Save e no ano seguinte, a 27 de Dezembro de 1894, são aprovados e publicados os estatutos da «Companhia de Moçambique». A exploração colonial de Moçambique, fosse nos territórios da Companhia, fosse mais a sul, concessionando mão-de-obra africana às minas do Rand na África do Sul, começava a revelar-se um empreendimento rentável. Em 1897, não mais de 6 anos após a instituição da companhia, o prazo da concessão foi alargado de 25 para 50 anos. A Companhia obrigava-se a construir linhas-férreas, estradas e portos, escolas, hospitais, a instalar colonos portugueses e, em geral, a promover o desenvolvimento económico do território. Tinha-se, entretanto, transformado numa sociedade de participações e as suas acções podiam ser adquiridas no mercado bolsista por qualquer um, independentemente da sua nacionalidade, mas para obstar à desnacionalização total da Companhia o governo determinou que a maioria dos seus administradores deveria ser constituída por portugueses e que a sua sede deveria situar-se em Lisboa. E é assim que entre os ilustres administradores da «Companhia de Moçambique» se encontram os nomes de Augusto de Castilho, Joaquim José Machado, Paiva de Andrada, Eduardo Vilaça, João Serpa Pinto, Carlos Roma du Bocage e o insigne historiador Joaquim Pedro de Oliveira Martins. Contudo, o governo português admitia a participação de não-nacionais nos escritórios de representação da Companhia em Londres e em Paris, de onde provinham os capitais que detinham a maior parte das acções. A presença do governo no território da Companhia era assegurada por um Comissário Régio e por 3 intendências situadas na Beira, Macequece e Sena, e 4 subintendências em Sofala, Chiloane, Gouveia e Chupanga. A partir de 1905 estabeleceu-se apenas uma intendência do Governo, na Beira.

12.7.03

O «Mafambissa» 
Joaquim Carlos Paiva de Andrada nasceu em Lisboa em 1845 e morreu em Paris, em 1928. Militar de carreira, na especialidade de artilharia, chegou a Moçambique já no posto de tenente-coronel. Organizou e comandou várias expedições de reconhecimento e de ocupação entre os territórios de Manica e da Zambézia, durante a década de 80 do século XIX, tendo sido responsável pelo reconhecimento da foz do rio Pungué. Fazendo o levantamento das terras circundantes, cedo se apercebeu da importância estratégica da região como tampão aos avanços dos interesses britânicos, então corporizados na empresa de Cecil Rhodes. Supõe-se que as explorações de Paiva de Andrada para o interior de Manica e Sofala, subindo o curso do Pungué, poderão ter sido decisivas na determinação do governo britânico em avançar com o ultimato de 1890. Deve-se a Paiva de Andrada a iniciativa, em 1884, da instalação de uma guarnição militar na foz do rio Pungué e, no ano seguinte, a construção, no mesmo local, de um porto. Nascia, assim, a cidade da Beira, futura sede administrativa da majestática «Companhia de Moçambique», que ajudaria a fundar, em 1888, e de que foi activo promotor. O seu carácter empreendedor e enérgico foi, de algum modo, reconhecido pelas populações locais que o alcunharam de Mafambissa, o que nos dialectos shona-karanga da região significa «homem que não pára, que anda depressa, que anda sempre».

Os mais belos selos 

Este raríssimo exemplar de 1892 terá sido, porventura, a primeira franquia postal a circular nos territórios da Companhia de Moçambique. Não se trata, ainda, de emissão própria. Sobre um selo de 5 reis da Província de Moçambique, não denteado e com a esfinge de D. Luís I, foi aposta a sobrecarga da Comp.ª de Moçambique. Nos anos subsequentes a Companhia ordenaria a impressão de franquias postais próprias, inaugurando uma série dos mais belos selos coloniais, que se prolongaria até 1941.

10.7.03

Companhias Majestáticas-III 
As companhias majestáticas resultaram de uma aliança muito eficaz entre os interesses dos capitais privados e as necessidades da administração política, relação particularmente atraente para as potências coloniais de finais de Oitocentos, ainda hesitantes em reinvestir nos seus domínios coloniais os resultados das colectas de impostos locais. Portugal, na esperança de que essas concessões atraíssem capitais que estimulassem o crescimento económico das colónias, começou, titubeantemente a partir de1870 e de uma forma mais decidida após 1885, a concessionar pequenas parcelas dos territórios coloniais a interesses privados exclusivamente portugueses. No caso de Moçambique, adicionalmente, a Coroa portuguesa procurava fechar o ciclo do regime dos prazos, um sistema de enfiteuse e comendas proveniente do Antigo Regime (que desenvolverei adequadamente numa outra ocasião), o qual se tinha tornado, por todo o século XIX, uma fonte acrescida de problemas sociais, económicos e até militares, chegando a pôr em causa a soberania portuguesa, nomeadamente por algumas lealdades implícitas com os interesses dos sultanatos de Zanzibar e Omã. Em finais da década de 80, todavia, tornou-se óbvio para a Coroa portuguesa que essas pequenas e limitadas concessões nos territórios mais recônditos das colónias, como a Companhia do Ophir de Paiva de Andrada, eram absolutamente ineficazes na atracção de capitais. Quando essas pequenas concessões, ainda exclusivamente nacionais, começaram a revelar a sua ineficácia, o governo português criou as condições necessárias para o estabelecimento de empreendimentos de uma outra dimensão, garantindo-lhes direitos de monopólio e atribuindo-lhes poderes de quase-soberania na ocupação e desenvolvimento coloniais. Surgiam, assim, as companhias majestáticas.

9.7.03

(Parêntesis) 
O Abrupto e o Aviz referiram-se amavelmente a este blog, o que agradeço. A leitura assídua de ambos e de mais uns quantos outros blogs (Estudos sobre o Comunismo e Guerra Civil Espanhola, sobretudo) motivou-me para a construção do «Companhia de Moçambique». Como escreve o meu amigo Francisco é apenas work in progress, nada mais do que isso, e, como refere Pacheco Pereira não falando «sempre das mesmas coisas» o «Companhia de Moçambique» sente-se um bocado em contracorrente, fora do main stream da blogosfera portuguesa. Não, não é pretensiosismo. É apenas uma imposição ditada por um campo muito limitado de interesses, um arrumar de ideias, quase que uma autodisciplina. Em Portugal tem-se falado muito de colonialismo mas a investigação sobre o tema é praticamente inexistente. Acontece até este facto verdadeiramente incompreensível de nos últimos 5 anos terem surgido nos meios académicos uns quantos seminários sobre o fenómeno post-colonial sem que, pelo menos no último quarto de século, se tivesse desenvolvido qualquer pesquisa sistematizada sobre o fenómeno colonial. O «Companhia de Moçambique» é um espaço de reflexão que não tem a pretensão de suprir essa lacuna. Procura, não mais do que isso, levantar pistas, alinhar factos e curiosidades, estabelecer conexões. E, evidentemente, é um espaço aberto. A quem queira participar, construindo, aí está o email: bahia.formosa@gmail.com.

8.7.03

Companhias Majestáticas - II 
Nos territórios coloniais portugueses a mais emblemática das companhias majestáticas foi, até pela sua perdurabilidade, a Companhia de Moçambique. Companhias majestáticas, assim se designavam as empresas de capital privado a que eram atribuídos poderes alargados sobre vastíssimas concessões territoriais nas colónias. A alienação detinha-se, apenas, na bandeira nacional, uma vez que as companhias majestáticas regulamentavam quase todos os outros aspectos da gestão dos territórios concessionados, como a cunhagem de moeda, a emissão de franquias postais e a colecta de impostos.
Em 1878 Joaquim Carlos Paiva de Andrada, senhor, entre outros, do grande prazo do Luabo, funda uma designada Société des Fondateurs de la Compagnie Générale du Zambeze, empreendimento que não foi além da escritura em notário. Melhor sorte parece ter tido a Companhia do Ophir, fundada pelo mesmo tenente-coronel Paiva de Andrada em 1884, empresa a que foram concessionadas as terras de Manica e do Quiteve. De todo o modo, a Companhia do Ophir, quer pela sua dimensão quer pelos poderes que estavam atribuídos (pouco mais que a exploração dos recursos naturais e colecta de impostos) não pode ser considerada uma companhia majestática. De alguma forma, poder-se-á dizer que estas primeiras empresas coloniais se constituíram num processo de transição entre o regime dos prazos, que então agonizava, e as novas plenipotenciárias companhias majestáticas.

Companhias Majestáticas - I 
A chartered company não foi uma invenção portuguesa nem a sua primeira realização ocorreu em África: em 1881 o governo britânico concessionou à North Borneo Chartered Company uma vastíssima parcela da metade oeste da ilha do Bornéu, na Malásia, outorgando aos interesses privados reunidos na companhia direitos de quase-soberania. Na outra metade da ilha do Bornéu (actualmente, parte integrante da Indonésia) governava a holandesa Companhia das Índias Ocidentais, em boa verdade uma empresa de «capitais mistos», isto é com capitais do Estado e de privados, erguida em 1602 com o claro objectivo de conquistar terras e ganhar dinheiro, dando outra racionalidade ao empreendimento colonial. Ao contrário de Portugal e Espanha, onde os privados se podiam associar à Coroa, a Companhia das Índias Ocidentais reunia puros accionistas, que entravam com capitais para a aquisição e aparelhagem dos navios. Os investidores, a Coroa holandesa e os particulares, recebiam parte do resultado global da empresa, na proporção das acções que possuíssem. Pode afirmar-se que a primeira chartered company britânica, a North Borneo Chartered Company de 1881, se inspirou na profícua experiência da sua vizinha holandesa. De igual modo, contágio semelhante deverá ter ocorrido no Brasil, onde, perante os avanços holandeses o Padre António Vieira incentivou a criação de uma companhia de comércio com uma frota bem aparelhada, visando contribuir para a restauração do comércio luso-brasileiro e dos transportes transoceânicos. O capital inicial da Companhia Geral do Comércio do Brasil foi levantado por Vieira junto dos comerciantes cristãos-novos, em compensação do qual obtiveram da Coroa portuguesa a dispensa das penas de sequestro e arresto dos bens nos processos de heresia, apesar dos protestos do Santo Ofício. Os estatutos da companhia foram reconhecidos pela Coroa em 8 de Março de 1649, definindo atribuições, deveres e responsabilidades, estipulando, entre outros, o monopólio para o comércio de pau-brasil e a aparelhagem de navios de guerra que deveriam acompanhar todos os navios mercantes que navegassem de Lisboa para Pernambuco. Apesar da inegável contribuição da Companhia Geral do Comércio do Brasil para a vitória definitiva contra os holandeses, em 1654, a companhia foi sendo progressivamente desfuncionalizada a partir dessa data, encontrando-se quase que paralisada em 1659 quando lhe foram retirados todos os monopólios de transporte e comercialização. Como em muitas outras ocasiões e situações no espaço administrativo português, no passado e no futuro, só foi formalmente extinta em 1720. Importa precisar que não se tratou, em momento algum, de uma companhia majestática, pelo menos no figurino que se afirmaria em finais de oitocentos: a Coroa não alienou nenhuma das suas prerrogativas essenciais, como a fiscalidade e a territorialidade, apenas cedeu importantes direitos de comércio, sob a forma de monopólio, e, mesmo assim, para os retirar muito antes do termo da concessão, que inicialmente tinha sido estabelecida por vinte anos.

7.7.03

Especificidades 
A situação colonial portuguesa, isto é, a dominação política, económica, social e cultural de Portugal sobre territórios, populações, sociedades e culturas situadas para além da sua matriz política e geográfica europeia original — situação essa que foi proporcionada pela expansão ultramarina iniciada no século XV — tem-se prestado às mais díspares caracterizações, quase todas elas assentes numa muito propalada especificidade do modelo colonial português: num extremo, a caracterização «humanista» do colonialismo português, de que o melhor exemplo são as posições de Gilberto Freyre [Integração Portuguesa nos Trópicos, (1958)]; no outro extremo, os autores que apregoam o subdesenvolvimento, exploração e iniquidade únicas do colonialismo português, de entre os quais poderemos destacar Barry Munslow [Mozambique: the revolution and its origins, (1983)] e Malyn Newitt [Portugal in Africa, the last hundred year, (1981)]. Mas, posta nestes termos, essa especificidade do colonialismo português não é mais do que uma falsa questão: não se trata de um destino, ou de uma designação divina; também não resulta de uma fatalidade histórica ou de um perfil psicossomático colectivo. Em boa verdade, o que há de específico não se encerra no próprio colonialismo português, como se essa fosse uma realidade não situada. O que existe de particular ao colonialismo português, vale também — em diferentes proporções e articulações, é certo — para as restantes práticas coloniais europeias contemporâneas da portuguesa: um conjunto de factores exógenos à própria situação colonial — mas que sobre ela operam com a mesma eficácia da dos factores endógenos — e que têm sido cabalmente expostos pela história económica e social nas últimas cinco décadas. Assim, fosse ditada por imperativos da economia mundial, derivasse de globais imposições geo-políticas, poderíamos chegar a esta paradoxal e extemporânea conclusão: a especificidade do colonialismo português resultou de um conjunto de factores cujo controle lhe escapou quase que por completo.

3.7.03

Uma questão de princípio 
O colonialismo foi o fenómeno de mais longa duração na história portuguesa e Moçambique, porventura, o território colonial português onde o seu exercício mais se distanciou do pretenso luso-tropicalismo. Colonialismo, tão-somente, portanto.

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